terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Olhos de TV

Prólogo

Não se sabe exatamente em qual parte do globo, um apartamento confortável. Era domingo à noite. Um rapaz de uns 19 anos chamado Yuri, talvez um pouco mais, assistia um filme. Nos sofás e poltronas da sala, seus pais e irmãos. Uma cena normal, familiar. Chegando mais perto, porém, enxergam-se lágrimas nos olhos do garoto e uma expressão contida de desespero, agonia, confusão. Rapidamente ele olha para os lados. Todos estão vendo o filme, tranquilos e felizes, mas ele não consegue tocá-los. É como se não estivessem na mesma dimensão.

Sua mãe oferece pipocas com manteiga. Ele prova. É como se estivesse comendo ar. A pipoca não tem gosto. É como se não estivesse comendo nada. O refrigerante que a acompanha, é como se evaporasse da boca. "O que está acontecendo?", pensava ele. Retira de seu bolso um drops de cereja e, felizmente, tinha gosto de drops de cereja! Enquanto chupa a bala, prossegue olhando para a tela. Aos poucos, é como se tudo ao seu redor estivesse se desfazendo. Você já teve esta sensação? É como olhar um ponto luminoso fixo, que era a TV, enquanto tudo ao redor se desfaz no ponto cego da vista. Ele, no entanto, preferiu não tirar o olho da tela. Temia o que seus olhos poderiam mostrar.

Parte I - Assustadora vida feliz

Na tela da TV, passava um filme indicado para toda família, um enlatado, um "blockbuster" como dizem. O protagonista era jovem e elegante. No decorrer do filme, ele enfrenta desafios como em praticamente todos os filmes deste estilo e tão previsivel quanto isso: ele os vence. Neste meio tempo, encontra uma jovem e se interessa por ela. Na metade final do filme, há uma grande perda - alguém morre ou ele precisa renunciar a algo e em contrapartida, ganha o amor da jovem e tudo acaba bem, como sempre. Ou melhor, quase tudo. Bem perto do fim, vemos o protagonista fazer algo que não parecia previsto no script. Vamos olhar um pouco mais de perto.

O protagonista não parece tão feliz. Ele tem uma expressão de impotência e reaje aos outros com espanto, parece os evitar e não consegue. É como se estivesse sendo empurrado pelo desenrolar do enredo. Encontra-se com a jovem, que o beija e não deixa qualquer impressão em sua boca. Ele sequer reaje. Após isso, tira de sua boca um drops e olha para adiante de tudo, como se pudesse assistir sua família parada e sentada em sofás e poltronas. Ironicamente, eles não podem ver que nosso protagonista os está vendo. A tela preta e as letras de crédito tomam conta da televisão.

Parte II - Criatividade árida

O jovem protagonista, Yuri, vê tudo escurecer e um novo cenário surge. Agora, ele é um adolescente chamado Andy em meio aos amigos com espírito aventureiro, que estão planejando passar as férias numa casa de praia. Momentos depois, já estão lá. Um deles , apelidado de Mike era particularmente irritante e fazia o comentário mais impertinente possível a todo instante, seja sendo vulgar com as garotas da "turma", seja exalando uma forçosa prepotência travestida em uma simpatia chauvinista. Yuri, à respeito deste sujeito, pensava: "eu ficaria feliz se este cara simplesmente sumisse".

Instantes depois, Mike é encontrado morto, misteriosamente assassinado. Uma das garotas reaje feito uma histérica gritando de maneira desesperada, enquanto nosso protagonista apenas olha espantado a realização de seu desejo, imaginando se havia relação entre seu desejo e a morte. Olha com expressão de misericórdia para a garota histérica, mas nota que ela é bastante superficial, apenas está gritando frases como "não pode ser!" "como isso foi acontecer?". Apenas está fazendo escandalo, mas é como um escândalo niilista de quem apenas não quer passar a impressão de ser insensível. Nota então que todos da turma parecem representar papéis superficiais e percebe que logo em breve, a histérica morreria, depois um por um dos demais, exceto uma das garotas que parecia dar mole para ele. A história se repetiria, afinal! Não importa qual o pano de fundo, qual o gênero se é que se pode diferenciar estes filmes em gêneros, alguns aspectos básicos iriam sempre se repetir e faria tudo previsível, tudo vazio.

Aqueas pessoas, entendeu ele, aquelas a sua volta chorando a morte do amigo, não podiam deixar de ser superficiais porque estavam marcadas para morrer. Olhou para fora da tela e viu expressões faciais de satisfação, de expectadores que esperavam por estas cenas e resolveu que aquele dia não poderia ter final feliz. Talvez só assim, conseguiria sair de sua sina repetitiva, de seu circulo vicioso alimentado pela satisfação de espectadores cujo espírito repetitivo era alimentado por filmes que, em seu âmago, eram todos iguais.

Durante toda a trama, procurou o assassino e queria ser morto por ele. Quando o encontrou, provocou até levar um tiro e caiu, perdendo a consciência aos poucos e se sentindo satisfeito, feliz por se livrar de seu circulo vicioso.

Parte III - Marcado para viver

Era um quarto confortável e bonito. A visão voltava aos poucos, assim como os outros sentidos. Procurava lembrar como veio parar ali e então percebeu: seu plano falhou. Milagrosamente sobreviveu. O tiro pegou de raspão. Uma das garotas da turma dizia a um dos caras que o protagonista retomou a consciência e havia jurado vingança. "O que? Minha atitude foi englobada no script? Não pode ser!" Resolveu então deixar tudo rolar, até o final feliz. Não havia mais nada a fazer, a não ser aturar a felicidade programada.

Assim foi em sucessivos filmes. Alguns eram comédias românticas ou apenas de idiotices, outros eram pseudo-dramas, outros eram suspenses e todos eram iguais. Ele sobrevivera a todos, encontrava uma namorada em quase todos e enfrentava desafios guiados sempre por um pano de fundo maniqueísta. Por mais que tentasse ser mal, era sempre bom e do bem.

Em um destes filmes, estava em uma lanchonete. Olhou ao redor e percebeu que estava com mais quatro "amigos" que combinavam de ir ao boliche. Tanto na lanchonete como no boliche, percebbeu cada vez mais como as frases de efeito retirada de músicas de sucesso ou com mensagens politicamente corretas, as poses, em especial poses repetitivas para tirar foto, com sinal de "V", de positivo, os sorrisos sempre iguais eram extremamente irritantes. Após tudo isto, Yuri, nosso protagonista foi para "sua casa" e após algumas cenas, se viu no sofá assistindo a um filme com "sua família" e pensou: "um filme dentro de um filme destes deve ser realmente uma bosta". Já perto do final do filme, um final feliz, um beijo entre os dois protagonistas seguido de uma fala da 'mocinha': "que delícia!" e então o mocinho tira algo da boca e mostra dizendo: "gostou do meu sabor cereja?"...

...Escuridão...

Yuri sentiu um dejavú. Foi como se levasse um choque que o acordasse de um transe percebendo que ele era aquele protagonista e que seu ato espontâneo de tirar a bala da boca no primeiro filme não fora espontâneo, estava programado no roteiro. Percebeu que suas ações estavam condicionadas. Não poderia viver livre, mas também não poderia morrer como o protagonista. Estava marcado para viver.

Sabendo que não podia mais fazer nada, mas que não aguentava mais ficar ali e assistir aquele dejavú, levantou e caminhou para fora da sala. "Sua família" não esboçou reação, exceto por sua mãe que, em um tom carinhoso disfarçando uma atitude policialesca disse: "onde vai, querido?". Ele a fitou por alguns instantes e seguiu o diálogo:

- "eu apenas vou dar uma volta..."
Ela respondeu com um sorriso. - "dar uma volta onde? Não quer a nossa companhia?"
- "Sim, eu quero. É que eu já assisti a este filme"
- "Não. Este é inédito, este é o '3', você deve ter assistido aos dois primeiros, vai perder o final?"
- "faz alguma diferença?" - e pensou consigo mesmo, "eu assisti por dentro, no fundo, não importa" e saiu.

Na rua, já bem tarde, foi até uma loja de conveniência. Lá, estava bebendo umas cervejas sozinho. De repente o local foi atacado por bandidos armados que renderam todos. Yuri resolveu reagir, afinal, o mocinho não morre mesmo e ele queria beber tranquilo. "Você é insano?" disse o bandido."Vamos, atire. Eu vou chamar a polícia se vocês não sairem". E ante o olhar assustado dos bandidos foi até o telefone, quando pegou o aparelho, tomou um tiro no braço e virou rapidamente para os assaltantes com um olhar de confiança. Em seguida, tomou três tiros que pegaram regiões de sua barriga e perto de seu peito. Os bandidos se assustaram e fugiram levando qualquer coisa pelo caminho. Ao cair em seus últimos suspiros, nosso protagonista percebeu uma televisão ligada e via os instantes finais do filme. A 'mocinha' chorava a morte do 'mocinho' dizendo "por que você tinha que ir? Não podia apenas ficar em casa?". Neste mesmo instante, a mãe, em casa, desligava a televisão ao final do filme e disse aos outros: "Pena que oYuri saiu, perdeu um grande filme, grande final. Talvez ele não soubesse e por isso mesmo saiu, mas os protagonistas às vezes morrem no fim".